“É só fechar a boca”: o papel da família na compulsão alimentar e na obesidade

Muitos pacientes se queixam no meu consultório de comportamentos da família que só alimentam sua baixa autoestima e seu sentimento de inadequação em relação ao corpo.

“Para emagrecer, é só fechar a boca. Tão fácil. Não sei por quê você não consegue”.

“Quer tanto emagrecer, mas se continuar comendo desse jeito, vai explodir de tanta comida”

“Depois não sabe por que não arranja namorado/ trabalho/ amigos, quem vai querer alguém desse tamanho por perto?”

“Não sei por quê você vai começar de novo uma dieta. A gente já sabe que você não vai conseguir mesmo, não é mesmo?!”

A queixa que os pacientes me trazem é que, frequentemente, as famílias desqualificam seu comportamento, reduzem-nos a um peso na balança e só pioram seu sentimento de inferioridade.

Por trás de um relato de que “só estou dizendo isso para o seu bem”, o núcleo familiar contribui, muitas vezes, para um sentimento de fracasso do paciente, aumentando sua culpa e vergonha perante as pessoas a sua volta.

Assim, tomados por angústias e raivas despertados a partir desses relatos, os pacientes acabam cumprindo então o destino já traçado pelos familiares e passam então a comer ainda mais.

Por um misto de “rebeldia” e ao mesmo tempo muito ódio por ter seu corpo e sua alimentação julgados o tempo todo, os pacientes depositam na comida suas frustrações e passam então a sentirem-se aprisionados nessa relação com os alimentos.

(Para saber mais sobre a relação aprisionante com a comida, ler Compulsão alimentar: quando a relação com a comida é uma prisão)

É importante retomar, primeiro, que vivemos em uma sociedade que sufoca os afetos e sentimentos e onde a lógica da performance predomina. Neste contexto, o gordo e a pessoa que sofre com a compulsão alimentar não têm lugar.

Isso ocorre porque, na visão de boa parte das pessoas, basta fechar a boca e “controlar” a relação com a comida que o problema vai embora.

A pessoa que apresenta esses quadros é vista então como “preguiçosa”, “desleixada”, “descontrolada” e “fraca” (por não conseguir segurar os impulsos no caso da compulsão), o que só piora sua baixa autoestima.

Essa visão da sociedade se reproduz dentro do microcosmo familiar fazendo o sujeito sentir-se isolado e discriminado dentro da própria família.

Há pesquisas evidenciando que o “fat shaming”e o bullying contra gordos começa dentro de casa e já na infância e adolescência.

Acredito que uma baixa autoestima diz respeito não apenas à relação do sujeito consigo próprio, mas ela também é alimentada na relação com as pessoas a sua volta.

Mas aí fica a pergunta que não quer calar: por que não fechar a boca? E não falo aqui de fechar a boca na relação com a comida, mas para essas desqualificações, críticas e julgamentos que se ouve o tempo inteiro.

Por que tão prontamente oferecer-se a essas falas e entregar seu corpo para o que quiserem fazer de você?

Por que sair engolindo (não apenas no sentido concreto, mas principalmente simbólico) tudo que te oferecem inclusive cobranças e comentários negativos?

Lembro-me assim de um trecho do poema Tabacaria do Fernando Pessoa (1978):

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.

Qual o dominó (no sentido de papel social) que você anda ocupando nas relações? Por que deixar os outros te vestirem tão prontamente?

Digo isso, pois muitos pacientes em meu consultório descrevem-se como excessivamente “legais” e “bonzinhos” com as pessoas em volta em um funcionamento de quem engole muito na relação com o mundo (e não estou falando aqui de comida).

Engole as dores, as raivas (principalmente), as frustrações, as decepções… Fica tudo guardado embaixo do tapete coberto com um manto de ressentimento e autossacrifício.

Ou então eles “vomitam” todos os sentimentos de uma vez em um comportamento explosivo e passional. Ou tudo ou nada.

E esse peso psíquico, a meu ver, tende a ser muito maior do que o peso físico.

Esse é o fardo que se carrega tão frequentemente nas costas de quem sofre com a obesidade e com a compulsão alimentar, como vimos no quadrinho da Laerte em Efeito sanfona: entenda suas causas emocionais e como transformá-las.

Sair então desse lugar de vítima na relação com o mundo é um passo importante na busca de uma relação mais leve consigo mesmo.

Mas como lidar com as famílias que desqualificam tanto o sujeito?

Em primeiro lugar, é preciso anunciar para esses familiares que o bullying, ao invés de ajudar, só traz mais sofrimento ao sujeito e só contribui para sua baixa autoestima.

Oriento os familiares dos pacientes que atendo que perguntem a eles se eles querem ajuda para melhorar a relação com a comida e com o corpo e, se sim, que eles possam dizer então como querem ser ajudados. É preciso devolver o protagonismo ao sujeito porque é ele que sabe da sua história e do seu desejo.

Digo a esses familiares que se tentamos encaixar o outro nas nossas expectativas, isso só os violenta e afasta do nosso convívio.

Em segundo lugar, trabalho com meus pacientes que se eles saem da posição da vítima, eles podem perceber a família real que eles tem e não a família perfeita que eles gostariam.

Fica claro assim que eles, enquanto pacientes, também ficam tentando encaixar a própria família nas suas expectativas idealizadas por isso ficam tão ressentidos e amargurados (como na lógica tudo ou nada que falamos em outros textos).

Eles podem então perceber que os pais deles também tiveram infâncias muito duras que não havia espaço para as questões emocionais.

Que a relação com o marido foi se construindo de um jeito onde ela não pudesse aparecer (e que a responsabilidade também é dela nisso). E que se os familiares não o percebem, é porque talvez ele tenha mesmo valores e crenças distintas das deles e que será completamente infrutífero querer mudá-los.

Olhar as relações como são de fato e não como se gostaria pode abrir espaço para tomar o caminho da própria vida em suas mãos e assumir as escolhas que fazem sentido para você.

Como brinca uma propagando que vi no Facebook, você não pode escolher a sua família, mas pode escolher seu Psicólogo. Você pode escolher de que forma lidar com a família real que você tem, buscar a sua leveza e assumir então o caminho que você quer.

Isso passa por começar dizendo alguns “nãos” para o lugar que as pessoas te colocam nas relações. Por que não começar hoje fechando (simbolicamente) a boca?

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Referencia:
PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1978.

1 comentário


  1. Melhor texto que já li sobre o assunto, resumindo tudo que já estudei a respeito: psicologia cognitiva, coaching, nutrição, hipnose , auto conhecimento, constelação familiar.
    Estou pegando trechos para meus pacientes.
    Gratidão pot compartilhar.

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